segunda-feira, 21 de junho de 2010

José Saramago

Meus caros,

E o céu está em festa novamente!!!
Segue abaixo algumas poesias deste cérebre.


MEIAS SOLAS

Bem sei que as meias-solas que deitei
Nas botas aprazadas não resistem
À calçada do tempo que discorro.

Talvez parado as botas me durassem,
Mas quieto quem pode, mesmo vendo
Que é desta caminhada que me morro.


“ÁGUA QUE Á ÁGUA TORNA”

Água que à água torna, de luz franjada,
Abre-se a vaga em espuma.
Movimento perpétuo, arco perfeito,
Que se ergue, retomba e reflui.
Onda do mar que o mesmo mar sustenta,
Amor que de si próprio se alimenta.


QUÍMICA

Sublimemos, amor. Assim as flores
No jardim não morreram se o perfume
No cristal da essência se defende.
Passemos nós as provas, os ardores:
Não caldeiam instintos sem o lume
Nem o secreto aroma que rescende.

FORJA

Quero branco o poema, e ruivo ardente
O metal duro da rima fragorosa,
Quero o corpo suado, incandescente,
Na bigorna sonora e corajosa,
E que a obra saída desta forja
Seja simples e fresca como a rosa.

ELOQUÊNCIA



Um verso que não diga por palavras,

Ou se palavras tem, que nada exprimam:

Uma linha no ar, um gesto breve

Que, num silêncio fundo, me resuma

A vontade que quer, a mão que escreve.





ESTUDO DE NU



Essa linha que nasce nos teus ombros,

Que se prolonga em braço, depois mão,

Esses círculos tangentes, geminados,

Cujo centro em cones se resolve,

Agudamente erguidos para os lábios

Que dos teus se desprenderam, ansiosos.



Essas duas parábolas que te apertam

No quebrar onduloso da cintura,

As calipígias ciclóides sobrepostas

Ao risco das colunas invertidas:

Tépidas coxas de linhas envolventes,

Contornada espiral que não se extingue.



Essa curva quase nada que desenha

No teu ventre um arco repousado,

Esse triângulo de treva cintilante,

Caminho e selo da porta do teu corpo,

Onde o estudo de nu que vou fazendo

Se transforma no quadro terminado.





AOS DEUSES SEM FIÉIS



Talvez a hora escura, a chuva lenta,

Ou esta solidão inconformada.



Talvez porque a vontade se recolha

Neste findar de tarde sem remédio.



Finjo no chão as marcas dos joelhos

E desenho o meu vulto em penitente.



Aos deuses sem fiéis invoco e rezo,

E pergunto a que venho e o que sou.



Ouvem-me calados os deuses e prudentes,

Sem um gesto de paz ou de recusa.



Entre as mãos vagarosas vão passando

A joeira do tempo irrecusável.



Um sorriso, por fim, passa furtivo

Nos seus rostos de fumo e de poeira.



Entre os lábios ressecos brilham dentes

De rilhar carne humana desgastados.



Nada mais que o sorriso retribui

O corpo ajoelhado em que não estou.



Anoitece de todo, os deuses mordem,

Com seus dentes de névoa e de bolor,

A resposta que aos lábios não chegou.





POEMA A BOCA FECHADA



Não direi:

Que o silêncio me sufoca- e amordaça.

Calado estou, calado ficarei,

Pois que a língua que falo é doutra raça.



Palavras consumidas se acumulam,

Se represam, cisterna de águas mortas,

Ácidas mágoas em limos transformadas,

Vasa de fundo em que há raízes tortas.



Não direi:

Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,

Palavras que não digam quanto sei

Neste retiro em que me não conhecem.



Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,

Nem só animais boiam, mortos, medos,

Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam

No negro poço de onde sobem dedos.



Só direi,

Crispadamente recolhido e mudo,

Que quem se cala quanto me calei

Não poderá morrer sem dizer tudo.